Na luz azul da manhã de uma quinta-feira esquecida, Oscar Wilde deixa a sua residência para dar um passeio num jardim público. Não está lá ninguém, ainda é muito cedo para as aves. Ele foi acordado de repente e não se lembrava das histórias que lhe tinham surgido durante a noite. Mais tarde, reapareceriam na “O Retrato de Dorian Gray”.
Numa noite chuvosa e solitária de Nova Iorque, Susan Sontag, ao terminar a última das “Entrevista Completa para a Revista Rolling Stone”, também vai dar um passeio. Ela está imbuída de confissões de outras pessoas. Nessa noite ela dorme e sonha os mesmos sonhos de Jim Morrison. Ela acorda e continua a escrever outras teorias sobre outras pessoas que tiram fotografias.
Antes de escalar os Himalaias, Sr. Edmund Hillary tem um sonho sobre si próprio a alcançar o pico mais alto. Nessa premonição, ele está sozinho com o seu equipamento e a sua ambição. Para que tal aconteça, incluir-se-ia o guardião, Tenzin Norgay, que o ajuda a alcançar o cume. Este sherpa desconhecido não lhe apareceu na noite anterior.
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O que acabou de ler são relatos fictícios, e talvez também verdadeiros como metáforas. São sonhos conjurados na vida real, de outras vidas que já passaram antes desta. Sonhos que testemunham a linha ténue antecedente entre a imaginaçãoe sonhos que podem ser divididos entre “acordados” e “adormecidos”.
O tema desta exposição, “Unconscious Fruit” é a vida interior do artista, Francisco Osório. Nas primeiras conversas ele fala dos seus sonhos como sendo coloridos e prolíficos. Muito do que está representado nestas pinturas, fotografias, esculturas e vídeos vem deste lugar escondido, do lugar da alegoria e da verdade quando se dorme. Os sonhos são contagiosos. No dia seguinte a ser convidada para fazer a curadoria desta exposição, comecei a sonhar e todas as noites desde aí que fui sonhando com mais intensidade, com num Kodachrome. Os sonhos são como um remédio invisível que se toma sem saber que se precisa deles. São também uma limpeza do sistema. São também culturais. São também possivelmente o acontecimento mais pessoal próximo dos segredos.
Em 2019, antes do Covid, uma sociedade de antropólogos americanos reuniu-se para uma conferência inaugural em Albuquerque, Novo México, para explorar e defender uma nova antropologia do sonho. O argumento é que esta nobre ciência social tem vindo a dedicadar o seu trabalho ao despertar da vida e assim negligenciou uma enorme parte da experiência humana, a vida adormecida. Enfrentaram, e ainda enfrentam, o enorme desafio da própria recordação, da arte da memória e da sua subjectividade, que pode ser debatida mas não pode ser quantificada. Em certas cosmologias não ocidentais, o espaço dos sonhos funciona como um portal de comunicação com os ancestrais. No entanto, devemos fazer a pergunta, será que uma análise do sonho implica também um conteúdo de sonho que é prejudicado para favorecer sanções socioeconómicas, históricas e culturais? A tendência para estes factores se infiltrarem em todas as áreas da vida é forte. Então, será o sonho um espaço puro? Um espaço livre destas opressões? Poderá ser assim? Ou será a paisagem dos sonhos também um espaço corrompido? Em qualquer dos casos, validar a vida adormecida, assim como a vida e o viver, é extremamente importante. Então, “Será que os Andróides sonham com Ovelhas Eléctricas”?
É raro ter a oportunidade de trabalhar de perto com um artista que se preocupa com o símbolo e o signo, como Francisco Osório. Isto, como núcleo da investigação de Osório, tanto como artista como humano, posiciona-o para gerar uma hermenêutica englobada na sua produção artística.
O avô dos movimentos da teoria dos sonhos anti-Freudianos é Carl Jung. Nos seus seminários sobre sonhos, ele detalha uma série de relatos dos seus pacientes, registando específicos arquétipos que ele mapeia nos seus sonhos, sempre preocupado em não selar nada apenas libidinal. Nos diários de Jung, ele detalha extensivamente os seus próprios sonhos e as sincronicidades que apareceram com os acontecimentos da vida acordada e os sonhos dos seus pacientes. Para Jung, o que quer que seja rejeitado do eu aparece no mundo como evento. Colocando lado a lado Osório e Jung, há várias distinções, mas o que aqui é relevante, é que Osório não se ocupa com a hierarquização do mistério.
Ele canaliza e isso é verdadeiramente único no contexto do ‘complexo expositivo de artes visuais’ que está obcecado com a negação da intuição como método e com a reafirmação da ‘viragem educativa’. Esta tendência premeia a justificação discursiva sobre o corpo emocional do artista.
Então, o que Oscar Wilde, Susan Sontag, Sir Edmund Hillary, Tenzin Norgay, Carl Jung, Francisco Osório e todas as pessoas que vêem esta exposição têm em comum? A potência absoluta e completa do seu inconsciente, o sonho como território fluido de mediação, e a presença da mente para cuidar a arte e o mundo.
“Unconscious Fruit” pode ser comido, é sumarento e abundante. Surge da parte da mente que é um ecrã para o coração e para os seus desejos. Sentado à mesa, descobre-se que este tipo de fruta tanto pode ser doce como amarga.
-Josseline Black September, 2022
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