Retomar o passo
Para quem acompanha as crónicas que Luísa Salvador tem vindo a escrever e publicar, há uma simplicidade desarmante na constatação poética das mais recorrentes e quotidianas evidências, na sua relação com a natureza e estações do ano, ou numa especulativa observação de afectos e enredos que se cruzam e se inserem num contexto de um olhar treinado a pensar a paisagem.
A conceptualização de um universo referencial percorre paralelo ao latente perscrutar pelo enigmático. A compreensão cosmológica do maior é experienciada no ínfimo detalhe do mais pequeno. Em Luísa Salvador, a palavra está viva e contém imagens. As imagens, por sua vez, são vivas e ocupam lugares na memória. Fragmentos, trilhos, rastos e rasgos são familiares ao seu léxico enquanto artista visual nos últimos anos, e advém de um conhecimento do tempo dos materiais e das suas possibilidades de actuar no lugar. Pensar na artista e investigadora é olhar este todo, e as indissociáveis relações intercomunicantes da sua prática que agrega uma natureza plural e de singulares contornos, como átomos que gravitam à volta de uma mesma circunferência.
Interessa, assim, pensar esta primeira exposição individual da artista na galeria, como um eco desse enredo ramificado e inerente à sua propensão contemplativa, analítica, necessariamente, caminhante; em que a palavra tem predominância e a sua existência coabita com o desenho, tal como a mão que desenha é a mesma que escreve. Retomar o passo parte precisamente desse esbatimento de fronteiras estilísticas ou temporais, e de uma necessidade de rever temáticas e de recontextualizar materialidades. Recuos e avanços são necessários à edição da escrita, como é natural a obsessão por imagens ou imaginários visuais à vivência do atelier. E nesta interseção da palavra e da imagem, repouso e movimento, mancha ou cor, atendemos às possíveis triangulações eletivas, também entre o pensamento, a paisagem e o gesto.
Arqueologia da sede, Angústia solar, Sombra sorte, Geologia do saber, O luto das pedras, Palavras por explicar, Escrever sobre a terra que sustenta os nossos passos, O sopro das folhas que não voltam, são algumas das frases apontadas num caderno-diário durante um período de cem dias precedentes ao pensar desta exposição, num exercício conceptual e metódico, de ritmo e síntese, em que vemos transportada no piso inferior do espaço a caligrafia. A mancha repetida e rasurada, de dimensões maiores e menores, como se a cada uma dessas mudanças formais se atribuísse um mapa de memórias, uma leitura do representativo naquele instante. E talvez aqui seja importante constatar o movimento introspectivo que tanto revela como confunde, os desígnios a que cada trecho corresponde. É através do gesto de composição e desconstrução do seu existir narrativo para o plano visual e da ficção, que acontece a sua inscrição no espaço. É no limite da exaustão do traço que se confronta a rigidez do sistema linguístico ou o devolver da palavra ao seu estado primordial.
As obras apresentadas no primeiro andar, por sua vez, tomam corpo no seu silêncio firme e trazem a memória do imaginário da cartografia no desenho, já presente em trabalhos anteriores da artista, quer em referências à paisagem do deserto ou na sua relação com a geologia do território. A marcação de trilhos, superfícies fictícias e riscadas a lâmina com pormenor e movimento. A escolha da tela, em comparação com a aproximação até agora em papel, ergue o suporte à sua condição de pintura e contraste cromático, onde se delimitam montanhas, vales, rios, a fronteira marcada pelo tempo ou a possibilidade de fluxos.
Voltando ao início, para quem acompanha as crónicas que Luísa Salvador tem vindo a escrever e publicar, há sempre círculos que se tocam, ciclos que se cruzam, existências que podemos conjecturar. As palavras ganham as suas próprias vidas. As memórias guardam as suas próprias imagens. A mão esbate o seu próprio rasto. A história continua. Em Retomar o passo, a caligrafia torna-se uma forma de inscrição não apenas de palavras, mas de trilhos. Uma partitura que mapeia os movimentos do pensamento e do vestígio. Uma cartografia de afectos e de deslocamentos, um território de transgressão e de experimentação.
Carolina Trigueiros
Janeiro, 2025