Carxs visitantes desta exposição,
espelho
Convido-vos a arranjarem o cabelo e a sacudirem-no da roupa; acabaram de entrar num lugar que é um espelho. Tudo o que poderão, ou não, ver neste lugar é o espelho inalienável de si próprio. Estes objectos que se encontram neste lugar (e é um lugar porque de facto lhe pertence uma história, um sentimento e múltiplas narrativas e que, apesar de ser de passagem, é sobretudo de viragem) são signos absolutos de e para quem os vê, e poderão leva-lo a uma prazerosa, ou horrorosa, compreensão do que é, ou não é, enquanto pessoa que existe no mundo.
producão
Este lugar assim se torna porque há na poética do seu autor- artista Hugo Cantegrel uma cisão entre o momento de criação e o momento de exposição, o que se revela nestes objectos como uma assimilação do que é sensível, a intuição, e do que é pensável e articulável, o que o leva a ver estes objectos como módulos de significação e a exposição como um lugar de coincidência entre várias realidades – inclusive a realidade da ficção.
Este movimento leva-nos também à coincidência da figura do artista com a figura do curador, um tempo atrás do outro, e ambos em sobreposição num espaço. Cantegrel repensa os objectos assim que estes lhe saem do corpo e se tornam exteriores a si e, como num jogo – e do que deste a vida carrega – , estabelece as regras que permitem a sua leitura. A junção, reunião ou ajuntamento de uns com outros permite-lhe ser a pessoa que conjuga signos e símbolos e formas mas abre também espaço para que quem vem e vê, sem os ter já feito, se posicione no mesmo lugar de autoridade perante estes. Ao nível da narrativa da exposição – o que ela diz – somos todos co-autores, espelhamo-nos todos na superfície cerâmica, no brilho do neon, no olhos lânguidos desta mulher.
técnica
Esta relação da produção com a reprodução e repensação, salvo jogos de palavras, é o que torna possível uma discussão além-técnica desta e nesta exposição. É não só a assumpção de Cantegrel da liberdade e autonomia da obra perante o artista, da sua mão, do seu fazer, mas igualmente a sua produção exímia, e/ou fria, industrializada. Em que não há falha. Pela ausência da falha que nos poderia fazer tropeçar em vãos – importantes ou desimportantes – da técnica e de outras sensibilidades, a discussão permite-se noutros lugares, o que será talvez sintoma da herança da arte conceptual que Cantegrel carrega.
É também no mesmo movimento técnico e de produção exímia de objectos altamente estetizados, prazerosos, portanto, ao olhar, que Cantegrel poderá acumular sentimentos que se supõe, deste lugar de fala, colectivos e relacionáveis com as narrativas individuais de cada visitante desta exposição. [Quais?] Que estamos todos à espera, que pensamos todos na morte, no desconhecido, no obscuro, nos outros, na infância, e se misturam todas as camadas de significação até que a soberba de tudo faz verter umas lágrimas. A origem? Debaixo de uma tartaruga, outra tartaruga
ser
Hugo Cantegrel apresenta a exposição JUST BEFORE WE BEGIN, mas é de bom tom notar que, mesmo antes de termos começado – e também o Hugo, e também esta exposição – já tudo havia começado. E, também que só muito depois de ter começado, arriscou ser, já depois da sua execução. Mesmo antes de este texto começar, este texto havia já começado. É assim mesmo que se começa, começando antes de se começar. Dar o primeiro passo é antes de mais aprender a dar o primeiro passo, por isso, desconhece-se a origem do primeiro avanço. O mesmo acontece com o ser, com o artista que o exerce, e com o tempo que o permite. E o que é e como é o tempo, como este é, como se exerce. Fiadeiro fala do tempo real como aquele que vai do momento em que se é afectado àquele em que nos relacionamos de forma não-passiva com esse afecto, por vezes apenas um milésimo de segundo. O diferencial necessário para que tempo seja simultaneamente uma norma colectiva mas uma experiência absolutamente individual (novamente assemelho esta imagem ao modo ou ao como desta exposição).
Cantegrel deste momento mesmo antes de começarmos, evocando um ambiente corporativo, diz- nos que se cria um particular espaço tempo quando alguém diz “antes de começarmos queria só…”, um espaço-tempo assente na espera, na suspensão. E onde esta exposição, lugar e espelho, se alicerça.
suspensão
Da minha imagem neste espelho que JUST BEFORE WE BEGIN reflecte, não posso deixar de ver a suspensão, latente em todas as peças. É de forma não contraditória que as peças que dão peso a esta exposição, os monólitos cinzentos que encaramos ao entrar, são as mesmas que a fazem levitar, ou ascender. Em Unidentified ufo, uma escultura de vulto redondo que assimila potências narrativas variadas, há duas leituras muito fortes; a do monólito visto por quem acede a esta exposição e a da imagem de quem retorna à sua vida, numa viragem para a saída desta exposição. Estes blocos verticais e verticalizantes, evocam o céu e o desconhecido, celebrando-os de uma forma que evoca sempre a ascensão. É curioso também que evoquem em mim outras obras estas duas metáforas de visibilidade; a do céu que desce o olhar e a do olhar que sobe ao céu. Uma peça de Alexandre Estrela, onde este toma um campo de monólitos como uma partitura a ser lida – a uma escala astral? – e as melhores de trinta e seis tentativas de John Baldessari para conseguir um quadrado com quatro laranjas a ser lançadas no ar. Também estas quatro laranjas, consideradas de um ângulo não suficientemente esclarecido poderiam ser lidas como um UFO ou OVNI, algo visto no céu e incompreendido ou inexplicável de determinada perspectiva. Esta evocação, evidente no meu espelho, do artista do mistério e da ficção científica, e do artista do humor concreto seja esclarecedora quanto à acumulação narrativa e associativa da exposição de Cantegrel.
ler
A duplicidade desta peça dá-nos o mote de leitura de todas as peças da exposição: muito embora o ser, seja, é ao contexto que pertencem as leituras. A incompreensão ou não-relação com o simples poderá gerar acreditança ou fé, no que poderá vir, e de onde poderá vir, mas também medo ou desconfiança. O mesmo para as bóias, lúdicas, lembrança de praias paradisíacas e risos altos de crianças, mas também objecto de salvação e símbolo ímpar da nossa responsabilidade burguesa de nos repensarmos perante os tantos que a elas se agarram sem divertimento, e estas com as quais não podemos nem brincar nem nos salvar, perfeitas, estetizadas como símbolo de todas as suas consequências. Mas também o bug desta exposição, 404 (an error occurred), a peça, confessa Cantegrel, que é verdadeiramente pessoal, a que não evoca símbolos, mas que se dá à possibilidade de os criar, de nos dar a ver a desconstrução das formas por onde fomos passando até aqui chegar, e que nos modelam o imaginário; a abstracção que faz eco. O que ecoa? Tantos sons como os que trazemos.
tears
E em segunda, ou terceira ou quarta, camada, a assimilação das peças e suas leituras umas com as outras, que destrói e reforça signos e simbolismos, que nos faz avançar com histórias e memórias e lembranças, tudo tudo tão rápido, tudo tudo tão coincidente. É aí que “sometimes I cry for nothing” aparece, não apaziguando, mas oferendo o comum da compreensão de que isto é um espelho, mas todos temos imagem, todos nos reflectimos. Nesta exposição, mas nos outros. Nesta exposição, mas no Outro. Nesta exposição, mas no mundo.
aparte
Muitas imagens me evocam versos, e pela possibilidade de poesia vivente na casa que é a obra de Cantegrel parece-me justo despedir-me dos visitantes desta exposição com dois versos de M.G.Llansol, que saúdo sempre, “ eu deslumbro-me quando o tempo se suspende, / e me permite parar a contemplar o espaço sem tempo “.
Lembrem-se que seremos apenas esquecidos quando se esquecerem do nosso esquecimento.
Até breve,
Catarina Real
©Photodocumenta