Alguns antropologistas argumentam que a espiritualidade só existe em coexistência com a morte, uma vez que apresenta ao indivíduo uma série de crenças que aliviam o medo da mesma. Muitas religiões acreditam que existe um lugar – um outro mundo – que possibilita a continuação da vida após a morte, onde a alma pode ser salva da sua condição material. A arte, tendo surgido por meio de mitos, magia e religião, manteve uma relação próxima com estas narrativas durante muitos séculos. No entanto, depois de um logo processo de secularização, a arte, em certa instância, ainda mantém a sua aura sagrada, trazendo ao de cima ideias espirituais, mas também uma possibilidade de existência post mortem.
Em “The Artworld”, Athur Danto definiu o mundo da arte como “um mundo que está para o mundo real, assim como a cidade dos céus está para a cidade terrena”. Para Danto, os trabalhos artísticos – se assim reconhecidos pelo espectador – são “transfigurados” num reino ontológico distante, completamente afastado e diferente do mundo físico e real. Em 1987, numa aula intitulada “O que é o acto criativo?”, Gilles Deleuze expande esta noção ao dar ao acto criador uma existência espiritual e existencial. O filósofo francês constata que uma obra de arte é um acto de resistência contra a morte porque é um impulso inevitável que visa a materialização de um pensamento ou de uma emoção, é um acto de “transubstanciação” do artista dentro da obra que ele criou, e que irá assim, eventualmente, manter a chama acesa ao longo dos tempos. Podemos então argumentar que na genealogia da espiritualidade e da criação artística existe uma relação íntima com a morte; mas, o que é a morte se não o fim do tempo, a sua conclusão?
A exposição “Para sempre prestes a terminar”, de Carolina Serrano, introduz a ideia de que a vida e a arte são parte da mesma luta espiritual e existencial contra a passagem do tempo. Esta exposição apresenta dois campos interligados através da escultura, desenho e fotografia. Num explora-se a dualidade entre espaço exterior e espaço interior, entre o cheio e o vazio. As fotografias presentes na exposição captam as surpreendentes manifestações na natureza de luzes que, por sua vez, formam sombras que se assemelham a feridas no chão; aberturas misteriosas e lugares fisicamente inacessíveis. Na série S/título (noites nocturnas), podemos encontrar a transposição destas formas através de um meio diferente, onde se nota a dicotomia da presença e da ausência. Este tema também está presente em Sou eu que me lembro e Tanta alegria e tu a chorar, não em relação à forma, mas ao tempo: presente e passado.
Por outro lado, a dimensão escultural do trabalho de Carolina Serrano indaga sobre as possíveis maneiras de usar o tempo como matéria, explorando as possibilidades teóricas, conceptuais e materiais da parafina tingida de negro, um material facilmente maleável através fogo. Este elemento está presente desde o primeiro momento da exposição na série Invisible drawings. Os traços semelhantes a chamas marcados nas folhas de cera negra só podem ser vistos se o espectador tentar encontrar a luz e a inclinação certas para os conseguir ver – uma procura metafórica e física da “luz”, que exige do espectador um papel activo no processo de criação das sucessivas esculturas. Quando acesa, a vela é sacrificada pela verticalidade da chama e este objecto inanimado “ganha” tempo, tornando-se mortal. Neste sentido, as velas tornaram-se um substituto simbólico do sacrifício de animais aos Deuses, uma prática milenar. Quando usadas em contextos ritualísticos, as velas substituem as pessoas que as acederam: mesmo quando se abandona o local da oferta, a vela continua a queimar, mantendo viva a prece inerente a ela. Portanto, ao mesmo tempo que a vela se torna mortal, adquire também uma dimensão metafísica perpétua; um vislumbre da eternidade.
Da mesma forma, o elemento mortal dentro de algumas das esculturas da artista permitem que elas existam em duas dimensões temporais: uma finita, e outra que é impossível de medir, isto é, um tempo transcendental, mais glorioso e eterno do que aquele que experienciamos no quotidiano, mais próximo do “tempo da arte”. Se a vulnerabilidade das esculturas para com o fogo é reconhecida pelo observador, ela concede às obras um poder de se transformarem num espelho da própria condição humana, criando um segundo momento de “transubstanciação”, desta vez, do espectador dentro da escultura. Logo, o observador, ao identificar nas esculturas o elemento mortal latente, abre as portas para a possibilidade das esculturas serem “vistas” de uma forma diferente, para serem derretidas e repetidamente destruídas pela nossa (in)extinguível chama interior, tornando-as sempre prestes a terminar e a começar de novo.
Curadoria de Mattia Tosti
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