É sobre o que há no espaço “entre” as coisas, as pessoas e as memórias. É sobre demarcadas
presenças em espaços físicos que ficam armazenadas como pensamentos sobrepostos.
Este é um conjunto de obras produto do recorte, serigrafia, tinturaria e trabalho em ferro, como processos de exploração de espaço.
Sendo os tecidos um corpo como o humano; um só fio é estrutural e um atuante no que vem a seguir, esta série de estudos-postal são corpos que lutam e mudam com o seu observador. São um relato do rasto deixado pelo seu movimento.
São trabalhos feitos de janela, da sobreposição de acontecimentos que transformam a cor em mudança constante. Espectar para se ver algo e filtrar para ter a perceção de.
*Gaze: Olhar fixamente. To See: Para ver. Gauze: Gaze; tecido fino transparente.
To Perceive: Para percepcionar.
Maria Appleton
Não é por acaso que a escrita se organiza como uma espécie de teia sobre a página. Talvez nos salve de cair no branco do abismo A4. No ocidente a cadência da leitura é da esquerda para a direita e de cima para baixo, seguindo linhas horizontais que são invisíveis até o momento em que recebem as frases impressas. Seguimos estas regras simples, mas as palavras nem sempre são assim tão obedientes. As palavras não querem estar presas à malha do texto, e provavelmente as ideias também não cabem todas na gramática. É preciso saltar por cima da página, atravessá-la, rasgar o pano, para chegar ao lugar solto onde as coisas existem por si só, sem texto, sem sutura. Chegar à substância. O café onde estou sentado é numa rua estreita e comprida, atravessada na perpendicular por outras três ou quatro ruas. A cidade também é uma malha labiríntica. Vim caminhando através dela depois de visitar o espaço partilhado onde a Maria trabalha. Peço um Americano e penso no gesto de desdobrar os tecidos no chão, e de levantá-los bem alto, braços esticados: estes tecidos são para atravessar, para ver entre e através. Os olhos não descansam, nem têm pressa. Às vezes uma cor confunde- se com a luz. Nada alude a nada, cada coisa é o que é: nervuras são nervuras, sulcos são sulcos, tons são tons, linhas são linhas. É quase Verão. Escrevo sem saber onde isto vai dar, e enquanto isso o Americano esfria. A rua está mais deserta que o Sahara. Não é por acaso que a palavra cor é afim à palavra calor. Duas palavras, uma latente na outra. Nos trabalhos da Maria também é quase Verão. Mesmo quando vier o Inverno, ali ainda estará calor. A pintura não perde temperatura. Pode até queimar. Os trabalhos são porosos. O ar desloca-se através das formas, circula entre lá e cá. As ruas dilatam-se para o calor passar. O olhar é táctil. E os olhos nunca estão estáticos, nem mesmo enquanto dormimos. Não é por acaso que se diz: planta da cidade. A sombra rega o silêncio debaixo de um toldo. Los Angeles talvez seja mais quente que Lisboa. Sevilha é mais quente que o Sahara. Não é por acaso que se chama de estação ao lugar onde o comboio para. Sem sair do lugar os trabalhos da Maria escapam às paredes. Acho que ela está mais interessada nos lugares onde os comboios não param de todo. Uma membrana tanto separa quanto une. Não é por acaso que se diz: planta do pé. O manejo do tear é musical. As janelas estão abertas. As mãos abrem este desdobrável e sem saber cada gesto já está embebido no formato do A4. É preciso escapar daqui. O corpo mergulha. Há concentração no pigmento. Qual é a substância da transparência? Vídeos flutuam na luminosidade. É preciso ir muito longe para chegar até aqui. A ferrugem demora até se tornar leveza. A distância percorrida tinge o tecido. Num instante tudo está pronto. Uma pintura nunca termina, apenas acaba de começar.
Tomás Cunha Ferreira