O Sombrio Futuro da Memória
Num hibridismo metafórico e animalesco Nádia Duvall explora a profundidade e a densidade do tempo que antecede a guerra: A Hora Azul. Nesse mergulho, no entanto, toda a cor vai escurecendo até desaparecer no breu. Esse afundar extremo alerta-nos para o perigo em que a Mulher se encontra no presente, actualizando a afirmação peremptória de um futuro presente que rejeita a prepotência, o abuso de poder, a lógica do medo e as mentiras vendidas como pós-verdades. Esperemos que os mitos nos reconstruam, preparando-nos para o confronto, remetendo sempre para o inefável que nos alimenta o espírito. A narrativa leva-nos ao mistério mais fundamental da existência, da convivência e do reconhecimento do diálogo como a única forma de “outrar” qualquer coisa de nós mesmos.
Numa exposição em que em cada obra explora o cinematográfico, mesmo no caso de ser uma escultura, as máquinas pensantes (Inteligência Artificial), que simulam os defeitos que só víamos quando filmávamos com película, procuram descobrir o sabor que sentimos na boca quando nos deixamos levar pela raiva ou quando o amor nos beija. Os filmes, e a arte em geral, são as mentiras que nos aproximam de verdades cada vez mais reais. Com a verdade me enganas inverte-se para que com a mentira me reveles verdades. As Mudas, por exemplo, são como frames de um movimento que permite que surja um símbolo da liberdade cristalizado da boca do silêncio.
Porque perdem as sereias a língua? Porque o canto é a sua arma. Essa música é um argumento tão sedutor e convincente que, quando combinado com melodia, ritmo e palavra, é mais forte do que qualquer feitiço ou vontade. Alguns homens com medo desse poder tentam por tudo que as sereias percam a língua, a linguagem e o canto. As Mudas apesar disso não perdem o seu poder, deixando apenas de o manifestar exteriormente. Interiormente continuam a cantar, atingindo êxtases que vão além do narcisismo, da auto-hipnose ou de uma felicidade sintética, oferecendo a si próprias arte, amor e paixão através do silêncio que têm dentro.
Esta exposição é apocalíptica, o que significa que anuncia um fim enquanto se propõe a ser também revelação. A sereia não tem sempre cauda de peixe, aliás, no caso do filme A Hora Azul tem cabeça de choco. A invocação do Qthulhu de Lovecraft, e acima de tudo do Cthulhuceno proposto por Donna Haraway, implica repensar o mundo para uma multiplicidade de espécies que terão de colaborar criando uma entidade híbrida que nos obriga a anular a destruição extrema que os humanos têm causado. Mais do que apenas um ser composto por múltiplos seres este Cthulhu-sereia é uma criatura que sente medo mesmo sendo extremamente poderosa. Tal como nos apresenta Duvall, é uma quimera de “oráculos, bruxas e sereias” num só ser que paira na água como um fantasma movido directamente pela vontade (númeno de Schopenhauer).
Há em cada monstro a evidência de uma transformação, de um tornar-se animal poderoso, consciente mas apenas capaz de pensar parte das sua emoções que o obrigaram a transcender a norma. É um mar revolto de céu negro que engole migrantes. São as mesmas águas que podiam ter engolido Nádia Duvall e em vez disso tornaram-na Cthulhu-sereia, a cantar para o mundo nunca se esquecer do que não quer ser. É preciso tornar a sociedade mais aberta, abrir-lhe a boca ao máximo de maneira a morder o exterior e permitir espreitar o interior, como se fosse um poro extremamente aberto.
A Mátria pede-nos que não esqueçamos a vasta influência do patriarcado para anularmos as perversidades e os desequilíbrios que gerou, para isso este Mar Desassossegado pessoano denuncia a tensão da antecipação da guerra que já não é possível evitar…
Manuel Furtado