Às vezes, em certos dias, as pessoas reúnem-se para se partilharem entre si livremente, como pássaros, e sem força. Também falam, mas a sua linguagem é ambígua, sob os raios sónicos do silêncio e a memória encoberta que lhes concedem o gesto e o toque. Os seus sinais não verbais são compreendidos. Há também uma brisa ligeira. Há um perfume. Faz-lhes lembrar algo, mas não conseguem situar o cheiro. O dia continua, lento e pesado como o verão. O sol derrama-se sobre as suas cabeças e quase se perdem no calor. É servida uma refeição. A mesa
é deixada desarrumada e ninguém se importa. As roupas são acrescentadas e retiradas dos corpos. A forma e a função das coisas confundem-se, invertem-se e reiniciam-se. Nos visores dos seus corações, as imagens materializam-se e desaparecem como ondas. Pertencem a si próprios e uns aos outros. O horizonte está próximo, tão próximo que se pode caminhar sobre ele, mas em vez disso o oceano defende o céu, e eles observam, calma, generosamente,
como as nuvens claras se movem. Ainda assim, não é claro quem escreveu o guião para este desenrolar de significantes. É tudo muito limpo, nostálgico, áspero, suave e pessoal. Alguém vê uma sombra, alguém vê um peito e um ombro pousados numa cama, alguém ouve o ruído de um pequeno motor a atravessar a terra. Vislumbres. Ousadia. Ternura. Não é perigoso confiar no mundo. Todos sabem disso.
Ao olhar para as fotografias de Cristina Stolhe, propõe-se algo de muito íntimo e também frontal. Quase como respirar de acordo com diferentes temperaturas, as suas obras nomeiam coisas que precisam de ser nomeadas e também deixam sem nome coisas que não devem ser pronunciadas. Faz sentido, de modo subliminar, que vejamos estas imagens, elas levam-nos a lugares, de volta a nós próprios e de novo ao vento. Os protagonistas são esquecidos. Novos protagonistas são saudados. Ninguém nem nada fica preso no tempo, mas há uma notável progressão no espaço. Poética não é a palavra correta. Quimérica também não. Honestas. Estas obras são honestas. Delicadas. São também delicadas.
Quando o corpo está fechado, certas coisas são possíveis. A guarda está erguida, estamos inacessíveis. Quando o corpo está aberto, a intimidade torna-se possível. É este o processo em que Hella Gerlach incorre quando cria corpos têxteis e os liberta nos seus ambientes. Aqui deparamo-nos com algo muito estranho e também muito humano. Afinal, não queremos todos ser vistos a partir do interior? E, ao mesmo tempo, esconder-mo-nos também? Não será este
o paradoxo de não estarmos totalmente conscientes de quem somos, mesmo que tentemos fragmentar-nos, não seremos ainda um pouco alérgicos à disgressão? A propósito do que se expõe e do que se oculta, as esculturas de Gerlach também palpitam, movimentam-se e fazem som. Estão vivas, com consciência, e a cores.
Juntas, Stolhe e Gerlach levam-nos a moldar como nos transformamos, a nossa memória e desejo. Não aqui é projetado. O dia move-se, suavemente, como um animal.
Julho de 2024, Josseline Black (tradução: Santiago Simões)
O trabalho de Cristina Stolhe analisa a experiência do quotidiano através da ferramenta fotográfica. Utilizando recursos analógicos, digitais e principalmente a sua câmera móvel, o seu trabalho explora a essência crua da vida enquanto cria um jogo “mais do que aparenta”, infundindo imagens com emoções que podem não parecer aparentes. As cenas de Stolhe suscitam uma sensação de nostalgia, um sentimento familiar, mas expõem a intimidade do momento através de lentes de voyeur, tentando valorizar o instante e torná-lo eterno. De certa forma, convida-nos a considerar como as nossas experiências e memórias individuais moldam as nossas vidas e identidades. Porém, o ato de fotografar nada mais é do que um impulso, uma necessidade expressa naquilo que entendemos por fotografia, traduzida num álbum infinito onde o artista também avalia o que é a fotografia, independentemente do meio. Em 2018 a editora Terranova lançou o seu primeiro livro Random Pictures Book, apresentado como uma ode à fotografia móvel, no qual explora o consumo excessivo de imagens na atualidade.
O trabalho escultórico de Hella Gerlach está profundamente entrelaçado com a tapeçaria viva das relações humanas, aparelhos e ambientes. Suas esculturas, muitas vezes feitas em madeira, cerâmica e tecido, servem como conectores receptivos que impulsionam o movimento, mediando entre o corpo do espectador (ou usuário, já que às vezes pede para ser tocado), o objeto e o espaço expositivo. Eles oferecem uma ponte tátil que visa, de forma lúdica, abrir o corpo físico às mutações e ao diálogo. No centro da sua prática está um exame transformador do corpo, tanto físico como emocional, através da sua ligação vulnerável a outros corpos, à sociedade e à tecnologia. O trabalho atual de Gerlach aprofunda seu exame do sentido e do conceito de tato. Algumas dessas peças suspensas, corpos de lã feltrada, estão conectadas a um dispositivo senso-motor que as faz vibrar, tremer ou ter espasmos. Tal como os sistemas nervosos peludos e vulneráveis, estes corpos envolvem-se numa investigação orientada para o processo de movimento, toque e brincadeira. Este novo conjunto de objetos está atualmente se transformando em um laboratório para esculturas interativas, que cresce com os humanos e seus ambientes.